Instruções para jogar fora um telefone celular

As palavras são como sombras. Não tema o abismo. Não procure a luz em meio a escuridão. Deixe-se perder de noite na rua, a floresta viva onde cada instante pode jogar-se como uma magnólia. Então espere.

Espere pacientemente até que seu telefone celular toque. Isso pode demorar um pouco se você for daquele tipo de pessoa reclusa, pouco inclinada a fazer amizades, a quem mesmo os amigos hesitam em contatar após as 22h00 com medo de incomodar. Espere, não anseie. Não pense que o telefone vai lhe dar os números que procura. Por que haveria de dá-los? Pouco importa, mais cedo ou mais tarde ele irá tocar, todos tocam. Quando o fizer, você deverá manter uma atitude natural, manter-se em pé, os braços dependurados sem esforço, a cabeça erguida, a respiração lenta e regular. Leve a mão ao bolso, retire o aparelho de mau gosto e dê uma boa olhada nele. Um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar. Resista ao impulso de atender. Um pedaço frágil e precário de você mesmo, algo que lhe pertence mas não é seu corpo. Não atenda. O medo de perdê-lo, de que seja roubado, de que possa cair no chão e se quebrar. Não ouse atender. O pertence é você.

Mas não tenha raiva. Pense que o telefone é também um ser. Se isto lhe for impossível por ter adquirido o hábito de acreditar no mundo exterior, procure um médico. Ele dirá que não é nada de mais e daqui a uma semana estará tudo bem. Então você estará pronta para voltar para seu lar – onde as mesmas coisas lhe esperarão outra vez para mais um dia – abrir a tampa do lixo e finalmente jogar fora seu telefone celular.

Caso você não possua um telefone celular, vá dormir e pare de me incomodar.

São Paulo
Junho de 2008

2 comentários:

  1. junho de 2008 ou novembro de 2009?
    (:

    ResponderExcluir
  2. Na verdade, boa parte do texto foi escrito na década de 50 pelo Cortázar e publicado no livro "Histórias de Cronópios e de Famas". Esse cronópio era foda.

    ResponderExcluir