Não perguntou de novo; agarrou o caixote e rumou para qualquer direção. Andou horas nas ruas da cidade, sempre tentando se distanciar mais de onde estava; buscando caminhos novos. À tarde, chegou em um bairro onde as ruas não eram asfaltadas e seguiu por aquela que parecia ser a principal. Depois de alguma distância as casas começaram a rarear e a estrada de terra se alargou. No final, não havia mais casas e a estrada terminava num manguezal. Deixou cair o caixote. Sentou nele. Não poderia acabar aqui, não dessa maneira. Teve medo. Medo de que o caixote, não fosse nada além de um caixote e de que sua viagem não fosse nada além de loucura. Contudo, o caixote continuava ali sem demonstrar reação. Saiu correndo de volta pela estrada sem o caixote. Mas o caixote não teme.
Correu muito e durante sua corrida chorou. Lembrou mais uma vez do silêncio e de sua casa, mas dessa vez não teve a calma e a quietude do vazio e sim raiva. Muita raiva de tudo e todos, e então chorou mais ainda. Parou de correr e, lentamente, ajoelhou e deitou. Não há escapatória, pensou. Chorou até não conseguir mais, e toda a raiva e os outros sentimentos foram lavados pelas lágrimas. Foi como um novo começo. Depois de chorar, já não dava mais importância a coisa alguma e pôde se levantar e seguir seu caminho de volta ao caixote. Que fique claro que não o fez porque acreditava no caixote, ou porque se sentiria estúpido tendo feito tudo isso e desistido, ou por qualquer outro motivo egoísta. O fez apenas porque sentiu que deveria, e apenas nesse ato não há egoísmo algum.
Avistou novamente o caixote, aproximou-se e, quase inconscientemente, chorou sua última lágrima em cima do caixote. E talvez, se você, cara leitora, for do tipo sonhadora ou sentimental, possa acreditar que o caixote também chorou. Mas (para todos os efeitos) o caixote não chora.
Juntos adentraram o mangue. A vegetação, no começo, não era densa e o solo ainda era facilmente caminhável mesmo sendo lamacento. Em diversos momentos, teve que usar de um braço para passar algum galho ou raiz e para isso precisou segurar o caixote somente com um braço fazendo pressão contra seu tronco. Quase o deixou cair algumas vezes. Chegou a um local em que a mata se tornava mais fechada tornando a travessia com o caixote praticamente impossível. Na sua frente havia uma grande barreira formada por raízes na parte inferior e galhos na superior. Entre estes havia um buraco suficiente para passar o caixote e depois se esgueirar. O caixote. Não teve dúvidas, jogou-o e esgueirou-se. Continuou seguindo, abrindo caminho como podia; usando o caixote como apoio em algumas passagens e jogando-o adiante quando o atrapalhava. O solo se tornava mais lamacento a cada metro; a certa hora ambos estavam completamente emporcalhados de lama. Ainda seguiram por quase uma hora no mangue, mas – tanto para o caixote como para o jovem – uma hora ou um minuto não faziam mais diferença.
Por fim, chegaram a uma praia. Era pequena - do mar ao mangue não davam vinte passos – porém se estendia até o horizonte e além, fazendo curvas e mais curvas. Muito longe, avistaram um pequeno fio que cortava a praia. Um rio. Entenderam. Andaram calmamente até lá. O jovem e o caixote. O caixote e o jovem. Quando se aproximava do mar, o rio formava um pequenino delta. Seguiram pela margem entrando de novo mangue até um local onde o rio era largo e fundo. A água estava fria; entraram os dois. Girou-o para retirar toda a lama, olhou-o bem pela última vez e deixou que a correnteza o levasse. Lavou-se também e fixou sua atenção no caixote que se distanciava. Não pode acompanha-lo muito, pois o rio fazia uma curva tapando sua visão, mas sabia que o caixote estava entregue. Agora, eram só o caixote e a correnteza, se algo desse errado ele não mais poderia interferir. Saiu das águas lentamente e fez o caminho de volta por dentro do mangue. Lembrou de sua casa pela última vez. Desta vez, nada importava, nem o silêncio ou o vazio, a calma, a raiva; nada mesmo. Era o caixote. Só. Irredutível.
Eventualmente, nosso jovem herói chegou de volta a sua casa. Porém, como em toda boa história, ele nunca mais foi o mesmo de antes. Largou a faculdade; já não conseguia mais se conformar em viver da forma que os outros viviam, algo dentro dele pedia mais. O caixote. Ou a lembrança dele. Mudou para uma pequena cidade costeira e ficou morando durante algum tempo num quartinho alugado. Trabalhava como pescador. Não era o melhor emprego ou o mais fácil, mas podia ver o mar todo dia e isso de certa forma era tudo que importava. E nadava. Nadava, nadava, nadava...
São Paulo
2002
2002
jogou seu caixote, ó pescador.
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