V

Acordou. Dormira bastante, mas ainda estava com um pouco de preguiça. Tomou um banho e ficou mais um pouco na cama. Por fim levantou. O caixote. Pegou-o e saiu. Parou na frente do edifício onde estava hospedado. Para onde ia? Previu que teria um longo dia e achou melhor comer ao menos de manhã. Na mesma padaria que jantara, tomou seu café da manhã sem pressa. Então teve que se confrontar outra vez com seu problema. Para onde? Virou para o caixote e perguntou em voz alta, “Para onde vamos?” Mas o caixote não sabe.

Não perguntou de novo; agarrou o caixote e rumou para qualquer direção. Andou horas nas ruas da cidade, sempre tentando se distanciar mais de onde estava; buscando caminhos novos. À tarde, chegou em um bairro onde as ruas não eram asfaltadas e seguiu por aquela que parecia ser a principal. Depois de alguma distância as casas começaram a rarear e a estrada de terra se alargou. No final, não havia mais casas e a estrada terminava num manguezal. Deixou cair o caixote. Sentou nele. Não poderia acabar aqui, não dessa maneira. Teve medo. Medo de que o caixote, não fosse nada além de um caixote e de que sua viagem não fosse nada além de loucura. Contudo, o caixote continuava ali sem demonstrar reação. Saiu correndo de volta pela estrada sem o caixote. Mas o caixote não teme.

Correu muito e durante sua corrida chorou. Lembrou mais uma vez do silêncio e de sua casa, mas dessa vez não teve a calma e a quietude do vazio e sim raiva. Muita raiva de tudo e todos, e então chorou mais ainda. Parou de correr e, lentamente, ajoelhou e deitou. Não há escapatória, pensou. Chorou até não conseguir mais, e toda a raiva e os outros sentimentos foram lavados pelas lágrimas. Foi como um novo começo. Depois de chorar, já não dava mais importância a coisa alguma e pôde se levantar e seguir seu caminho de volta ao caixote. Que fique claro que não o fez porque acreditava no caixote, ou porque se sentiria estúpido tendo feito tudo isso e desistido, ou por qualquer outro motivo egoísta. O fez apenas porque sentiu que deveria, e apenas nesse ato não há egoísmo algum.

Avistou novamente o caixote, aproximou-se e, quase inconscientemente, chorou sua última lágrima em cima do caixote. E talvez, se você, cara leitora, for do tipo sonhadora ou sentimental, possa acreditar que o caixote também chorou. Mas (para todos os efeitos) o caixote não chora.

Juntos adentraram o mangue. A vegetação, no começo, não era densa e o solo ainda era facilmente caminhável mesmo sendo lamacento. Em diversos momentos, teve que usar de um braço para passar algum galho ou raiz e para isso precisou segurar o caixote somente com um braço fazendo pressão contra seu tronco. Quase o deixou cair algumas vezes. Chegou a um local em que a mata se tornava mais fechada tornando a travessia com o caixote praticamente impossível. Na sua frente havia uma grande barreira formada por raízes na parte inferior e galhos na superior. Entre estes havia um buraco suficiente para passar o caixote e depois se esgueirar. O caixote. Não teve dúvidas, jogou-o e esgueirou-se. Continuou seguindo, abrindo caminho como podia; usando o caixote como apoio em algumas passagens e jogando-o adiante quando o atrapalhava. O solo se tornava mais lamacento a cada metro; a certa hora ambos estavam completamente emporcalhados de lama. Ainda seguiram por quase uma hora no mangue, mas – tanto para o caixote como para o jovem – uma hora ou um minuto não faziam mais diferença.

Por fim, chegaram a uma praia. Era pequena - do mar ao mangue não davam vinte passos – porém se estendia até o horizonte e além, fazendo curvas e mais curvas. Muito longe, avistaram um pequeno fio que cortava a praia. Um rio. Entenderam. Andaram calmamente até lá. O jovem e o caixote. O caixote e o jovem. Quando se aproximava do mar, o rio formava um pequenino delta. Seguiram pela margem entrando de novo mangue até um local onde o rio era largo e fundo. A água estava fria; entraram os dois. Girou-o para retirar toda a lama, olhou-o bem pela última vez e deixou que a correnteza o levasse. Lavou-se também e fixou sua atenção no caixote que se distanciava. Não pode acompanha-lo muito, pois o rio fazia uma curva tapando sua visão, mas sabia que o caixote estava entregue. Agora, eram só o caixote e a correnteza, se algo desse errado ele não mais poderia interferir. Saiu das águas lentamente e fez o caminho de volta por dentro do mangue. Lembrou de sua casa pela última vez. Desta vez, nada importava, nem o silêncio ou o vazio, a calma, a raiva; nada mesmo. Era o caixote. Só. Irredutível.

Eventualmente, nosso jovem herói chegou de volta a sua casa. Porém, como em toda boa história, ele nunca mais foi o mesmo de antes. Largou a faculdade; já não conseguia mais se conformar em viver da forma que os outros viviam, algo dentro dele pedia mais. O caixote. Ou a lembrança dele. Mudou para uma pequena cidade costeira e ficou morando durante algum tempo num quartinho alugado. Trabalhava como pescador. Não era o melhor emprego ou o mais fácil, mas podia ver o mar todo dia e isso de certa forma era tudo que importava. E nadava. Nadava, nadava, nadava...

São Paulo
2002

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