IV

Abriu os olhos. Lá estava ele. O caixote. Impassível. Levantou-se e olhou pela vidraça que ficava no alto de uma das paredes. Já era dia. Saiu do quartinho. O caixote. Voltou para busca-lo e com ele passou pelo corredor até o aposento onde ficavam os fornos da padaria. “Bom dia.” disse o homem jovialmente enquanto terminava de retirar uma fornada de pães, “Você estava bem cansado, não achei que fosse acordar tão cedo. Vem, vamos comer alguma coisa.” O jovem se limitou a concordar com a cabeça e empurrar o caixote em direção ao balcão da padaria. Sentaram no balcão. A mesma atendente do dia anterior lhes trouxe café e pão na chapa. Conversaram. Sobre o que não se sabe. Talvez tenham falado da grande jornada espiritual que é a vida de todo ser humano e sobre como é necessário seguir seu coração nos caminhos que se escolhe; talvez tenham discutido sobre quão longa e dura poderia ser a viagem que o jovem tinha pela frente; talvez tenham proseado sobre suas famílias como compadres; talvez tenham ficado em silêncio. Ou – talvez - tenham falado sobre o caixote. Mas isso não importa. O que realmente importa é que se entenderam como raramente dois desconhecidos conseguem. Talvez fosse o caixote.

Quando terminaram, o jovem estendeu-lhe uma nota, dizendo, “Pela sua ajuda e pela estadia.” Foi o homem quem hesitou então. Por fim falou, “Não é necessário, garoto. Guarda que você pode precisar mais pra frente.” Novamente, se limitou a concordar com a cabeça. Apertaram as mãos e o jovem partiu com o caixote sem olhar para trás.

Andou durante muito tempo, como havia feito no dia anterior. Porém, quando o sol chegou a seu pico, não conseguia mais prosseguir. Seus braços e pernas doíam; suava como se estivesse numa fornalha. O caixote. Parecia mais difícil carregá-lo do que nunca, as palmas de suas mãos estavam marcadas pelo peso. Colocou-o numa sombra perto do acostamento e sentou-se em cima dele. Durante um bom tempo, descansou nessa posição. Ouvia o barulho dos carros, mas estranhamente lembrou-se do silêncio de sua casa e teve a mesma sensação de vazio e quietude. No entanto, seu corpo ainda estava muito cansado e também com fome. O último local onde poderia encontrar comida estava cerca de meia hora atrás; preferiu arriscar e seguir em frente a perder tempo. Abraçou-se a caixa e partiu enfrentando o cansaço.

Não chegou a andar dez minutos e teve que parar outra vez. Nunca estivera tão cansado em sua vida. O caixote. Estava pesado demais, era quase como se tivesse resolvido se voltar contra ele. Mas o caixote não pensa. Ele não tem culpa alguma. O jovem descansou mais um pouco e então resolveu tentar uma carona. Demorou a tomar essa decisão; pensou se este não seria um recurso inválido em sua viagem, uma possível traição conta si mesmo. Foi até a estrada e voltou algumas vezes. Finalmente, se convenceu de que não havia outra saída possível e de que ele tinha de fazê-lo. Durante muito tempo, ficou parado ao lado da estrada com o braço estendido sem sucesso. Ninguém parava fosse carro, ônibus ou caminhão. Até que, ao longe, ele avistou uma caminhonete preta vindo pela estrada. Estendeu o braço e acenou freneticamente, numa atitude desesperada. A caminhonete passou da pista para o acostamento e veio lentamente até o jovem. “Pode subir.” falou o motorista, que não era muito mais velho que o jovem. Encaixou o caixote no pequeno espaço vago que havia entre as malas na caçamba e entrou na cabine. “Bela bagagem essa que você tem. O que leva ali?” perguntou o motorista, enquanto partiam. “Nada. Só o caixote.” “Há! Essa é boa. Sabe, eu geralmente não daria uma carona, mas simpatizei com você.” “Obrigado.” “Então... Pra onde cê pretende ir?” “Até o fim da estrada.” “Que mal lhe pergunte, mas o que diabos você vai fazer no fim da estrada?” “Levar o caixote.” nesse momento, sentiu-se um perfeito idiota falando sobre uma coisa completamente sem sentido. “Ah tá...” O motorista colocou uma fita no rádio e ficaram ouvindo-a. Descansou bem seu corpo, mas com o fim do cansaço percebeu que estava com muita fome, “Pode me deixar no próximo lugar onde tiver um restaurante que eu preciso comer urgentemente.” “Então cê tá com azar, porque a gente tá chegando na serra e só vai ter comida depois.” Não respondeu. Ficaram ouvindo o rádio durante toda a descida e depois, até chegarem em uma cidade onde o jovem desceu no primeiro restaurante. “Boa sorte com o caixote, cara!”

O restaurante era simples; comida por quilo. Primeiro, deixou o caixote ao lado de uma mesa que podia ver e enquanto se servia, e depois se serviu de um prato enorme com tudo que havia para comer. O lugar não estava muito movimentado, havia poucas pessoas almoçando e menos ainda trabalhando. Algumas olharam estranhamente para o jovem e o caixote, e fizeram comentários baixinhos umas pras outras. Comeu bem e repetiu o prato. Quando foi pagar, informou-se sobre um local para se hospedar e rumou imediatamente para lá com o caixote. O caixote. Já não parecia mais tão pesado quanto antes, poderiam ser o cansaço e a fome, mas o caixote realmente dava a impressão de estar mais leve, como se tivesse se acalmado. Mas o caixote não sente.

Alugou um quarto e ainda manteve consigo um pouco de dinheiro. Era um quarto relativamente pequeno; cama, banheiro, TV e frigobar da maneira mais compacta possível. Ligou a TV, entretanto não agüentou vê-la sequer um minuto e teve que desligar. O caixote. Olhou para ele. De novo, o silêncio tomou conta dele e sentiu-se em casa; vazio. Vigiou o caixote por longos minutos que se estenderam melancolicamente. Se ao menos tivesse alguma companhia. Mas o caixote não fala.

À noite, comeu um lanche numa padaria próxima e voltou para seu quarto cedo querendo dormir. Sabia que de amanhã não passava. Deitou-se na cama e ficou olhando para o teto. O caixote. Estava ali, mas não quis olhar para ele. Mesmo porque, o caixote não vê.

Estava em lugar algum. O caixote. Estava lá também. Fora isso mais nada. Queria sonhar. Mas o caixote não sonha.

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