-Vejas, meu caro, deixemos de bobagens e de uma vez por todas digamos a verdade. Mas toda a verdade. Quero dizer, falemos de catedrais e de prostíbulos, de esperanças e campos de concentração. Eu, pelo menos, não estou para piadas,
porque vou morrer.
Quem for imortal que se permita o luxo
de continuar dizendo besteiras.
Eu não: tenho os dias contados (mas que homem, meu
caro jornalista, não os têm contado, diga-me, com a
mão sobre o coração)
e quero fazer um balanço
para ver o que sobra de tudo isto
(mandrágoras ou escritores)
e se é certo que os deuses têm mais valor
que os vermes
que em seguida hão de engordar com meus despojos.
Eu não sei, não sei nada (para que enganá-lo?),
não sou tão arrogante nem tão besta
para proclamar a superioridade dos vermes.
(Que isso fique para os ateus de bairro.)
Te confesso que o argumento me impressiona
pois o caixão
o carro fúnebre
e esses grotescos implementos da morte
são visíveis testemunhos de nossa precariedade.
Mas quem sabe, quem sabe, senhor jornalista!
Poderia ser que os deuses não condescendessem a
rebaixar-se tanto,
não acedessem à baixa demagogia
de se fazer grosseiramente compreensíveis,
e nos esperassem com sinistros espetáculos,
logo que o último discurso fosse pronunciado
e nosso solitário corpo
para sempre abandonado a si mesmo
(mas, anote, abandonado de verdade, não com esses
imperfeitos, anelantes e em definitivo inúteis abandonos
que a vida nos proporciona) aguarde o ataque inumerável
dos vermes.
Falemos, pois, sem medo
mas também sem pretensões
singelamente
com certo sentido de humor
que dissimule o lógico patetismo do assunto.
Falemos de tudo um pouco.
Quero dizer:
desses problemáticos deuses
dos evidentes vermes
dos cambiantes rostos dos homens.
Não sei lá muita coisa destes curiosos problemas
mas o que sei o sei de verdade
pois são experiências minhas
e não histórias lidas em livros
e posso falar do amor ou do medo
como um santo de seus êxtases
ou um mágico de teatro (em um reunião caseira,
entre gente de confiança)
de seus truques.
Não esperem outra coisa
não me critique assim tão rápido, não sejam
perversos, caramba.
Nem mesquinhos.
Lhes advirto: sejam mais modestos
pois também vocês estão destinados (e patatipatatá)
a alimentar os vermes antes mencionados.
De modo que, com exceção dos loucos e dos invisíveis
deuses (talvez inexistentes)
todos os demais farão bem em escutar-me senão com
respeito pelo menos com condescendência.
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