Piii! Piii! Piii! Piii! Piii! P. Desligou o alarme. Saiu da cama para não dormir novamente. Sua mente continuava parcialmente no mundo dos sonhos e mesmo depois do banho ainda não estava acordado por completo. Realizou seu processo rotineiro de tomar café, escovar os dentes e se trocar para ir a faculdade; pegou o dinheiro que sua mãe lhe dera, mas parou na sala quando olhou para a porta. Só então acordou por completo. O caixote. Estaria lá? Lembrou-se do dia anterior - da inquietude que o caixote lhe havia causado. Decidiu outra vez que o caixote não tinha nada de especial e que tudo isso não passava de uma paranóia estúpida; o caixote havia sido retirado ontem pelo zelador e, portanto, não poderia estar lá. Mas estava. Estava exatamente no mesmo lugar das outras duas vezes em que se deparara com ele. O jovem teve uma terrível sensação de deja vu e não soube o que fazer desta vez. Rodeou o caixote e olhou-o de perto. Realmente, era igual por todos os lados; todos eram lisos sem variação de cor ou tonalidade ou qualquer característica marcante. As tábuas eram hermeticamente encaixadas e pregadas, de modo que não havia fresta alguma pela qual se pudesse observar o conteúdo dele. Virou-o para sentir o peso – era mais pesado do que as coisas que costumava carregar, mas não impossível. Deixou sua mochila em casa e partiu para a faculdade com o caixote.
Teve dificuldades em encontrar uma posição boa para carregá-lo; o mais cômodo era realmente segurá-lo com os dois braços na frente do peito. No ponto, colocou-o no chão para descansar e acabou sentando-se em cima dele. Não demonstrou sinais de que fosse ceder - a madeira nem sequer envergou-se com o peso. O ônibus chegou e como sempre estava praticamente vazio. Mesmo assim teve uma tremenda dificuldade para subir com o caixote, e só então percebeu que este dificilmente passaria pela catraca. Pagou o cobrador, girou a catraca e sentou-se num dos bancos da frente, deixando o caixote bem no meio do corredor por onde passavam os passageiros. O primeiro que subiu depois dele esgueirou-se pelo espaço estreito que sobrava no corredor, mas outros vieram e o jovem se viu obrigado a colocar o caixote no banco meio torto, pois não se encaixava perfeitamente naquele espaço. Das pessoas que passavam, algumas davam uma olhadela para o caixote, a maioria não, contudo; hoje em dia as pessoas tem mais com o que se preocupar do que com a vida dos outros.
Chegou o ponto da faculdade, mas não desceu ali. Por alguma razão não achou que este seria um bom lugar para andar com o caixote, e este já não poderia ser considerado um dia comum em que se deve seguir a rotina. Sentiu-se livre e, naquele momento, prometeu a si mesmo que levaria o caixote até onde fosse necessário. Foi observando o trajeto do ônibus entusiasmado, pois nunca havia ido além daquele ponto; e passou então a imaginar em que lugar desceria. Poderia ser uma fábrica onde houvesse muitos outros caixotes iguais a esse. Ou talvez um terminal, onde o colocaria em algum ônibus para uma cidade muito distante. Podia ser qualquer lugar. O ônibus seguiu por algumas ruas e tomou uma estrada que o foi levando cada vez mais longe do centro da cidade. Aos poucos, a paisagem foi se tornando mais pobre e o ônibus voltou a entrar em algumas ruas, desta vez porcamente asfaltadas. O jovem quis ver até onde esta linha ia, e desceu no ponto final numa rua que se aproximava novamente da estrada.
Ainda era cedo, sentou-se em cima do caixote na rua e pensou um pouco. Olhou para a estrada e esta lhe tentou; quem poderia saber aonde levaria? Não pensou novamente, partiu em seu caminho pela estrada com o caixote, distanciando-se da cidade a cada passo.
Andou o dia inteiro com o caixote sob um céu nublado, sem descansar ou sequer comer. Antes de escurecer, chegou a um novo indício de civilização; uma espécie de vizinhança que ficava a beira da estrada. Entrou no primeiro estabelecimento que encontrou - uma padaria. Encostou o caixote numa parede e sentou-se no balcão. “Me vê um suco de laranja e um misto quente.” A atendente olhou bem para o caixote, “Suco, é?” “Isso.”
O local era simples, havia o balcão e duas mesas, com poucas pessoas sentadas conversando. Acima do balcão, de frente pra quem estava sentado, ficava uma TV passando novelas ou noticiários. Um homem veio detrás do balcão trazendo o suco e o misto. Ele olhou rapidamente para o caixote, como que para se certificar de algo e então fixou seus olhos no jovem, “Você não é da região, é?” O jovem deu uma mordida em seu sanduíche e virou-se para o homem; era um senhor de meia-idade, bigodudo e quase careca, “Não, eu venho pela estrada.” “Sei... E se me permite a pergunta, para onde vai?” O jovem olhou nos olhos do homem – não parecia estar escondendo nada, “Vou até onde tiver que ir. Onde a estrada me levar.” “Pois então vai longe.” riu o homem, “Esta estrada desce a serra e vai até o mar.” Sentiu um calafrio percorrer seu corpo e, pela primeira vez desde que partira com o caixote, hesitou. O caixote. Como que por instinto, virou-se para conferir se estava lá. Estava. Era uma longa estrada certamente, e por que percorrê-la? Todo tipo de problemas poderia acontecer; ainda era o primeiro dia e ele já estava morto de cansaço e fome. Olhou novamente para o caixote. Este não demonstrou resposta. Retomou sua determinação e disse, “Se for preciso vou até o mar e além.” O homem riu novamente, “É bom ser jovem, garoto; mas não seja burro, você nunca vai conseguir levar o caixote até lá.” Neste momento, uma grande raiva tomou posse do jovem; era a primeira vez que outra pessoa falava sobre o caixote, e estava menosprezando-o. Dirigiu um olhar cortante para o homem, acabou seu suco e seu sanduíche, pagou, pegou o caixote e foi saindo; quando o homem disse, “Você vai precisar de um lugar pra dormir, pode ficar nos fundos se quiser, lá tem um colchonete e não faz muito frio.” O jovem voltou-se, o homem parecia despreocupado com a situação, como se um jovem desses aparecesse todo dia em sua padaria. Disse apenas, “Obrigado.” e foi para o quarto nos fundos que o homem lhe mostrou. Acomodou o caixote num canto e caiu no sono.
Estava em seu quarto. Tudo parecia muito escuro. Andou até a sala; as portas e janelas estavam todas fechadas. Parou em frente à porta de entrada. Ela era muito maior que as outras e estranhamente mais viva. Procurou a chave. Não a encontrava em lugar nenhum. Vasculhou toda casa, em todas as gavetas, até mesmo as que não existiam. Abriu a porta. O caixote. Lembrou do que era a realidade, ele sim era real. O caixote.
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